Livro de autores brasileiros é um convite ao debate sobre alguns tabu/Arquivo Pessoal
ELENICE DUEÑAS*
Revelador, pioneiro e reflexivo, “Gay Indians in Brazil: Untold Stories of the Colonization of Indigenous Sexualities” (Índios Gays no Brasil: As Histórias Não Contadas da Colonização das Sexualidades Indígenas) é o novo título que chegou ao mercado editorial internacional neste ano como um convite ao debate sobre alguns tabus.
Livro de autores brasileiros, lançado pela editora suíça Springer International Publishing, uma das maiores editoras científicas do mundo, tem como base a pesquisa para a tese de doutorado em antropologia do professor e pesquisador Estevão Rafael Fernandes, da Universidade Federal de Rondônia. A publicação traz a parceria da antropóloga gaúcha Barbara Maisonnave Arisi, atualmente pesquisadora visitante na Vrije Universiteit Amsterdam e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Na lista dos mais vendidos no pré-lançamento da Amazon, a obra é um estímulo em direção à dissolução da imutabilidade de certos paradigmas.
A pesquisa revela a influência das instituições portuguesas e brasileiras na transformação das sexualidades indígenas ao longo da história do Brasil. “A sexualidade não pode ser encarada como uma esfera à parte da religião, da cosmologia, da pessoa e da história”, explica Fernandes que destrincha os caminhos tortuosos das autoridades religiosas e governamentais para impor a heterossexualidade compulsória aos povos indígenas.
Pioneiros na sistematização de um tema tão pouco explorado, os autores pretendem futuramente prosseguir a pesquisa e analisar as resistências dos índios homossexuais às políticas indígenas do País. “A propaganda colonial conseguiu solidificar uma mentira de que a homossexualidade é ou era algo importado”, aponta Arisi.
Neste cenário, o que mais surpreendeu Fernandes foram “os casos de violência, o enorme número de suicídios e, sobretudo, os casos de coragem dessas pessoas”. Sobre isso, Arisi também é categórica: “o Brasil é um país que trata mal suas mulheres e seus pobres, incluindo nessa categoria as/os trans. É uma violência impressionante, caso de denunciar o País por violação de direitos humanos em tribunais internacionais como na OEA e no de Haia”.
Agora, a expectativa dos autores é de que alguma editora ou associação científica no Brasil, ou Portugal, se interesse em publicar o livro em língua portuguesa, de preferência disponibilizando o livro gratuitamente ou com um preço popular.
* Elenice Duenãs é gaúcha, ecojornalista, mora em São José dos Campos (SP) e na atualidade viaja pelo Himalaia.
Sobre os autores
Estevão Rafael Fernandes: Antropólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Mestrado em Histórias e Estudos Culturais da Universidade Federal de Rondônia. Fernandes é ainda colaborador no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Mato Grosso (PPGAS/UFMT). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (2002), mestrado em Antropologia pela Universidade de Brasília (2005) e Doutorado em Ciências Sociais (Estudos Comparados sobre as Américas) pela Universidade de Brasília (2015). Realizou doutorado “sanduíche” com bolsa Capes na Duke University (Carolina do Norte, EUA) sob orientação do Prof. Walter Mignolo, sendo pesquisador visitante no Center for Global Studies and the Humanities daquela Universidade. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Sexualidades indígenas, Decolonialidade, Etnologia indígena, Gênero, índios Xavante, Contato Interétnico, Cosmologia Indígena, Índios Jê, Educação e política indigenista. Publicou diversos artigos abordando temas relacionados às sexualidades indígenas, além de organizar publicações e dossiês especializados sobre a temática.
Barbara Maisonnave Arisi: Antropóloga, jornalista e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu, rio Paraná. Atualmente, é pesquisadora visitante na Vrije Universiteit Amsterdam. Foi diretora do Instituto Latino-Americano de Artes, Cultura e História (ILAACH) da UNILA (2013/2016). Realizou pós-doutorado (2011/2012), doutorado (2011) e mestrado (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio doutoral no Institute of Social and Cultural Anthropology da University of Oxford (2010), com Laura Rival. Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (1995) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É orientadora de mestrado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos e co-orientadora de doutorado na UFMA e UFSC. Desde 2006 é associada da Associação Brasileira de Antropologia,. Possui experiência em Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena e em Gênero. Em 2015, foi entrevistada para a revista Science sobre a política para índios isolados. É colunista do site de jornalismo independente Amazônia Real. Temas de pesquisa: índios autônomos ou ‘isolados’, Matis (Pano), TI Vale do Javari, Amazônia, sexualidades e gênero, ecologia, economia da cultura e economia circular. Atualmente desenvolve pesquisa sobre o manejo de resíduos sólidos nos Países Baixos na direção de uma economia circular.
ENTREVISTA COM ESTEVÃO FERNANDES E BARBARA ARISI
Estevão Fernandes: Surpreso e feliz, mesmo porque acho que nem a Barbara nem eu esperávamos por isso. Mas até aqui temos avaliado o impacto como extremamente positivo. Trata-se de uma temática importante para (re) pensarmos não apenas os fundamentos sobre os quais nossos paradigmas a respeito de gênero e sexualidade se fundam, mas, também, pôr em evidência o papel que o colonialismo teve – e tem – nos processos que levaram à subalternização e invisibilidade de indígenas os quais não se enquadram nos padrões impostos, historicamente, ao longo do processo de colonização. O livro é, certamente, um ponto de partida para que essas questões possam ser devidamente aprofundadas, de preferência partindo das reflexões dos próprios indígenas sobre quem tais processos incidem cotidianamente. Uma boa repercussão que se seguiu à publicação do livro é que vários deles tem nos procurado ou feito postagens em redes sociais se reconhecendo no percurso apontado em nossas pesquisas. Talvez tenhamos aí coisas interessantes surgindo, e esperamos que nosso livro seja um primeiro passo nesse sentido.
Barbara Arisi: As pessoas querem saber sobre as coisas sobre as quais pouco é escrito. Há um desejo em conhecer mais sobre outras possibilidades de relacionamentos afetivo-sexuais. Acho que também muitas/os homossexuais querem saber sobre a diversidade sexual entre povos indígenas, pois a propaganda colonial conseguiu solidificar uma mentira de que a homossexualidade é ou era algo importado. Será ótimo se conseguirmos trabalhar destruindo mais tabus e tratando sobre diversidade sexual abertamente.
O livro ter sido aceito para publicação na Springer, editora suíça considerada uma das maiores editoras científicas do mundo, foi uma surpresa ou vocês já esperavam por isso?
Estevão Fernandes: Não esperávamos. Buscamos várias editoras e algumas organizações científicas no Brasil na tentativa de publicar o texto em português e em formato de e-book, para ser disponibilizado gratuitamente. Ainda temos esse plano, mesmo porque isso possibilitaria o texto chegar nas pessoas cujas histórias o livro retrata. Com a repercussão positiva em torno da publicação, seria ótimo se isso acontecesse!
Barbara Arisi: O livro tem como base a pesquisa para a tese de doutorado do Estevão, é resultado de um trabalho árduo de leitura de fontes históricas. Acho que a Springer também deu sorte de ter publicado o livro, modéstia à parte. Nunca duvidei que o livro venderia bem. Espero que as editoras se liguem que vale a pena publicarmos logo o livro na América Latina em português, espanhol e guarani.
“O tema é pouco abordado
de forma sistemática,
apesar das várias referências na
literatura histórica e etnográfica”
O que os inspirou a pesquisarem e se aprofundarem neste tema?
Estevão Fernandes: Em princípio provavelmente o fato de que o tema é pouco abordado de forma sistemática, apesar das várias referências na literatura histórica e etnográfica. Tentar entender o porquê disso, e o que isso nos permite compreender sobre sexualidade, gênero, mas também sobre colonização, contato interétnico e como o conhecimento se (re)produz na academia, acabou parecendo um bom ponto de partida.
Barbara Arisi: Sem sexo, não nasceria ninguém. Escrevi sobre sexualidade na minha tese, pois os Matis com quem estudei antropologia queriam saber como fazíamos sexo, queriam comparar as sexualidades deles com a minha. Estavam vendo filmes pornô na aldeia e achavam exótico o que viam, quando cheguei para morar com elas e eles na Amazônia, aproveitaram para perguntar sobre tudo, como beijamos usando a língua, como as mulheres ficam em cima durante o sexo, como eu tinha apenas uma filha, sobre desejo entre homens, mulheres, trans. Conversei sobre tudo com as mulheres e com os homens na aldeia. Certa feita, em Santa Catarina, passei a noite na casa de uma família Guarani e uma jovem espontaneamente resolveu se abrir contando sobre sua iniciação sexual, aprendi mais com ela do que lendo todos volumes do “História das Sexualidades”, do Foucault. Completei minha especialização organizando um evento Transday em Foz do Iguaçu com minhas doutoras amigas lésbicas e trans, aprendi muito com as sofisticadas teorias de quem aprendeu vivendo no próprio corpo a diversidade. Adoro gente que leva a vida fora das convenções e prisões sociais. Na universidade, fiz um pós-doutorado no Núcleo de Identidades, Gênero e Subjetividades, coordenado pela prof. Miriam Grossi; dela e das colegas do núcleo recebi minha formação mais acadêmica. Quando li pela primeira vez um texto do Estevão, comentei-o com todo o cuidado e assim a gente se conheceu e começamos nosso diálogo e co-autoria. Acho que a gente se complementa na forma como refletimos e como aprendemos com nossas experiências e nossos corpos sobre o tema.
Há pouco material e estudo sobre o assunto? Vocês tiveram que “garimpar” muito até encontrar fontes bibliográficas? Pode-se dizer que vocês são os precursores?
Estevão Fernandes: Outra boa surpresa! O que achamos foi, justamente, o oposto disso! Tem muita coisa escrita, aqui e ali. Fontes primárias desde o século XVI – incluindo um manuscrito escrito pelo Gabriel Soares de Sousa em 1587 e publicado em 1839 como “desconhecido”! O que talvez falte seja uma sistematização mais aprofundada sobre o tema, mas, ainda assim, muita gente boa – como Luiz Mott e João Silvério Trevisan, por exemplo – já havia dado alguns passos importantes no sentido de sistematizar esse material. Sem falsa humildade, se há “precursores”, nesse sentido, certamente são eles. Esperamos, sim, ter dado alguma contribuição – mas sabemos que um esforço de arqueologia da sexualidade no Brasil (incluindo a ação da colonização sobre negros, ribeirinhos, quilombolas, populações rurais e interioranas diversas, etc.) renderia um trabalho bastante interessante, mas com mais gente, tempo e recursos do que tivemos e temos à disposição. Articular e realizar isso seria um sonho!
Barbara Arisi: A gente se apoia no ombro de outras e outros. Como publicação escrita por acadêmicos latino-americanos em inglês, talvez sejamos precursores. Esperamos estar logo em boa companhia, pois o conhecimento é algo coletivo.
O que vocês destacariam ou o que mais surpreendeu vocês durante o trabalho de campo?
Estevão Fernandes: Os casos de violência, o enorme número de suicídios e, sobretudo, os casos de coragem dessxs indígenas.
Barbara Arisi: Para mim, o trabalho de campo é permanente sobre sexualidades, a partir de minha experiência com o meu corpo e com as pessoas com quem me relaciono. Aprendo muito também escutando as vidas alheias, tenho um amor antropo-psicanalítico em escutar as outras pessoas e como elas experienciam seus corpos e desejos nesse mundo, vivo em estado de surpresa., a agressões físicas e morte.
“Em todas as culturas, se experimenta
e se vive relações
homo-afetivas e homossexuais”
Como a homossexualidade é vista pelos indígenas?
Estevão Fernandes: Difícil e mesmo impossível generalizar. Historicamente, o que se vê, é como o queer não era considerado degradante e como essas pessoas não eram vítimas de preconceito dentro de suas culturas – ao contrário, em várias culturas ou situações era relacionado a um papel religioso. A discriminação é algo que se deve, de modo geral, ao processo de contato e às formas como a colonização foi e é gerida. Hoje, de um modo geral, várias nações indígenas não encaram essas sexualidades fora do modelo hegemônico como um problema, mas, por outro lado, outras já internalizaram o preconceito – e isso ocorre de dois modos: o primeiro seria denominando essas pessoas por palavras que, em suas línguas nativas, referem-se ao veado (animal) ou fazem menção ao ânus; enquanto o segundo seria por meio de agressões mais diretas, associando o queer ao pecado e/ou à perda da cultura, chegando, muitas vezes, a agressões físicas e morte.
Barbara Arisi: Acho que em todas as culturas, se experimenta e se vive relações homo-afetivas e homossexuais. Conheci trans indígenas muito respeitadas por suas comunidades, mas também soube de muitos relatos de violência. Ninguém é, infelizmente, tão diferente assim. Seria bom conhecer culturas onde não há violência contra homossexuais, mas creio que nenhuma será exceção. Moro na Holanda, primeiro país a regulamentar o casamento gay no mundo, em 2001, e recentemente esse ano houve um novo caso de agressão e violência contra um casal de homens.
Os indígenas encaram e lidam com a própria sexualidade de maneira diferente da nossa sociedade? Há pontos comuns e divergentes, pode citar alguns exemplos?
Estevão Fernandes: Essa pergunta renderia muito! Vou tentar responder de forma sintética, fazendo um gancho com a resposta anterior. Uma das coisas que percebemos é que sexualidade não pode ser encarada como uma esfera à parte da religião, da cosmologia, da pessoa, da história, etc. Assim, a “homossexualidade” e/ou a “sexualidade” não existem fora de inúmeras camadas de significado, de contextos diversos e de uma conjunção de nuvens discursivas e construções diversas…. se há algo que os movimentos queer indígenas norte-americanos nos ensinam é que uma das chaves de interpretação da questão se dá ao se deslocar as interrogações do eixo da sexualidade nos “nossos” termos para eixos relacionados a cosmologia, história e colonização. O problema (ou um dos problemas) – e sei que aqui vou arranjar briga com gente graúda, mas é algo que urge ser dito e devidamente enfrentado nos círculos hegemônicos da academia brasileira – é que tendemos a reproduzir uma episteme euronorcentrada desde a qual questões como gênero e sexualidade fazem sentido – quase sempre uma narrativa branca, de classe média e com um sotaque blasé. Desse modo, tende-se a não se encarar essas sexualidades-outras (rurais, quilombolas, ribeirinhas, indígenas, etc.) em seus próprios termos, pois elas nos desafiam a pôr em xeque justamente essas noções hegemônicas e as redes de poder que as sustentam. A heteronormatização compulsória alcança essas coletividades desde outros dispositivos os quais, uma vez evidenciados, nos provocam a pensar outras chaves – politicas, inclusive – fora das caixinhas epistemológicas reproduzidas cotidianamente no mainstream. Falando assim parece uma simplificação da questão, mas ilustrativo nesse sentido é termos, de modo geral, tão poucos autores feministas negras e/ou latinas, ou indígenas queer nas cadeiras sobre gênero e sexualidade nas Universidades, enquanto outro conjunto de pensadores tem lugar garantido nessas disciplinas. Como dissemos antes, seria um sonho conseguirmos articular uma rede nesse sentido!
Barbara Arisi: Concordo com o Estevão em tudo. Mas apenas gostaria de acrescentar que a reposta depende de quem consideramos ser os ‘povos indígenas’ (há tantos e tantos povos, com suas maneiras muito diversas, além disso, há variedade interna, na experiência pessoal de cada um/a). Também depende quem entra no termo “nossa sociedade”. O Brasil é um país que trata mal suas mulheres e seus pobres, incluindo nessa categoria as/os trans. É uma violência impressionante, caso de denunciar o País por violação de direitos humanos internacionalmente como na comissão de direitos humanos na OEA e no Tribunal Internacional de Justiça em Haia. Mas, infelizmente, verificamos entre muitos povos indígenas também violências contra os homossexuais, violações perpetradas por não-indígenas, mas também por indígenas. Parafraseando e transformando a afirmação da autora famosa feminista Gayle Rubin que afirmou que infelizmente não havia uma “teoria que desse conta de analisar a opressão às mulheres em suas tão variadas formas e monótona similaridade”, podemos afirmar que as violências contra os LGBT são variadas, mas apresentam uma similaridade também que chega a ser monótona, tragicamente similar em todos cantos desse mundo redondo. Porém somos otimistas, pois as culturas são dinâmicas e podemos combater a banalidade da violência. Stonewall que marca o início do levante gay em nível mundial contra a violência policial em Nova York provocou muita mudança positiva, muitos direitos foram conquistados e mantidos, como união civil legal de pessoas do mesmo sexo, adoção homoparental, entre outros.
Por que este tema é relevante para toda a sociedade e não só para os indígenas?
Estevão Fernandes: Por inúmeros motivos, mas destaco dois: entender esses processos nos chamam a atenção para um aspecto pouco abordado da colonização – ou seja, como a colonização impõe, de diversas formas e partindo de diversos paradigmas, um determinado padrão de sexualidade visto como “normal”, ao intervir direta e cotidianamente na gestão moral dos povos indígenas (o que chamamos de “colonização das sexualidades indígenas”). Um segundo motivo seria a possibilidade de aprendermos com os povos indígenas a convivermos com outras formas de ser, viver, parecer, amar… sem discriminação ou agressões… neste sentido, eles nos impelem a compreendermos e combatermos a gênese dos preconceitos sobre os quais se assentam valores e normas de nossa própria sociedade – em especial nestes tempos sombrios, nos quais homofobia, racismos, intolerância e discursos xenofóbicos e de ódio têm se tornado uma constante. Mais do que um exercício analítico de compreensão e reflexão analítica, a questão do enfrentamento é algo a ser enfatizado aqui. Esse ciclo de violências e de imposição de um sistema moral branco, hetero, cristão, euronorcêntrico e capitalista-liberal não é algo recente, muito pelo contrário, pois é preciso desvelar esses processos para enfrentá-los e romper com eles.
Barbara Arisi: Para combater a violência e o abuso e punir quem comete tais violências.
“Mesmo a esfera mais íntima de alguém,
o íntimo e o interno de nosso corpo,
pode ser foco de colonização.”
O que exatamente vocês querem dizer com a expressão “a colonização das sexualidades indígenas”?
Estevão Fernandes: Recentemente foi publicado um texto na Revista Enfoques sobre o tema (disponível aqui). De modo geral, a noção diz respeito a processos de heterossexualização compulsória daqueles povos, tendo por base pressupostos científicos, teológicos, sociais e culturais e a partir de dispositivos articulados aos discursos e práticas religiosos, civilizatórios, acadêmicos e/ou políticos. Esses processos são intrínsecos ao estatuto ontológico dos povos indígenas em relação à sociedade colonial e incorporando as respostas indígenas a esses processos. Com isso, quero dizer que as formas pelas quais lhes foi imposta uma sexualidade “normal” deve ser compreendida em paralelo com as noções teológicas, filosóficas, científicas etc., a partir das quais os índios eram (e são) compreendidos no Brasil pelos setores hegemônicos da sociedade colonizadora. Nesse sentido, entendo que tal imposição insere-se em um conjunto de ações que busca[va]m normalizar a vida indígena, incluindo sua sexualidade, sendo aquelas sexualidades fora dos parâmetros desejáveis pela metrópole consequência e não diretamente a causa da visão dos indígenas como selvagens, incivilizados, inferiores, degenerados etc. O livro é, em larga medida, uma tentativa de demonstrar como esses processos ocorreram e ocorrem.
Barbara Arisi: E que mesmo a esfera mais íntima de alguém, o íntimo e o interno de nosso corpo, pode ser foco de colonização. O controle dos corpos e o biopoder – como ensinou Foucault – não tem limites. Muitos e muitas tentam controlar nossas vaginas, pênis, tetas, corações e mentes, como devemos nos vestir, nos sentar, andar, dançar, beijar, casar. É um inferno, os outros (riso) para brincar com a frase dita por um dos companheiros da feminista pioneira Simone de Beauvoir. O pior é quando a gente mesmo vira a auto-censora. É uma tarefa diária ser lúcida e fazer escolhas quando não se quer viver enquadrada na ‘matrix’ das convenções sexuais ditadas pelos outros e outras.
A análise de vocês leva a crer que a opressão da igreja e do Estado levam à condição desta “colonização das sexualidades” ou ela já existia na sociedade indígena de outra maneira?
Estevão Fernandes: É complicado generalizar, mesmo porque grande parte das fontes históricas que temos à disposição, hoje, são os registros deixados a partir do olhar do colonizador. De qualquer forma, nosso esforço analítico foi muito mais no sentido de tentar evidenciar os sistemas discursivos que justificavam – e justificam – essas práticas do que, necessariamente, fazer uma análise mais estrutural do fenômeno desde a perspectiva mais específica deste, ou daquele ator ou instituição… assim, buscamos apontar, por exemplo, como a ideia de “sodomia” era importante no contexto da consolidação dos estados ibéricos ou de que maneira ideias como “raça” e “civilização” foram fundamentais na gestão moral dos povos indígenas ao longo dos últimos séculos. Assim, nossa proposta é que essa noção de “colonização das sexualidades” possa ser aprofundada e generalizada para compreendermos os dispositivos desde os quais essa gestão moral é parte inerente à (con) formação de uma ordem colonial.
Barbara Arisi: Sobre antes da “invasão bárbara”, como diz meu mestre de etnologia Rafael Bastos, temos registros orais, podemos apenas especular. O que sabemos é que há grande variedade nas formas de arranjos familiares, por exemplo. Agora, sobre como vivem hoje os povos, podemos afirmar que os Matis, com quem vivi, tem casamentos de um homem com duas mulheres e também de uma mulher com dois homens, é aceito e valorizado socialmente tanto como um casamento de um homem e uma mulher. Aliás, é mais normal ter mais de uma mulher do que apenas uma, especialmente entre os mais velhos. Sabemos também que alguns povos valorizam e respeitam seus homossexuais. Podemos afirmar sobre a realidade atual que muitos povos indígenas têm relacionamentos familiares fora do padrão monogâmico e heterossexual.
“É impossível descolar essas questões
da incorporação compulsória
da mão de obra indígena
ao sistema de exploração hegemônico”
Como se dá a naturalização desses silenciamentos, dessas invisibilidades, dessa subalternização? Por que isso ocorre em diversas culturas, raças e etnias? Seria inerente ao ser humano?
Estevão Fernandes: Isso seria tema para mais um livro e é, certamente “a” questão a ser enfrentada. Não penso, contudo, que isso seja algo inerente ao ser humano e mais do que se perguntar “Por que” isso ocorre talvez seja uma questão de compreender “como” isso ocorre e de que maneiras esses processos de subalternização e silenciamentos dão sentido à própria ordem colonial. No caso indígena, por exemplo, é impossível descolar essas questões da incorporação compulsória da mão de obra indígena ao sistema de exploração hegemônico. Autorxs como Fanon, Cesaire, Anzaldúa e outrxs deixam claro como esse processo de esvaziamento de si é parte fundamental do processo de colonização, de tal modo que estas questões acabam ultrapassando as fronteiras das discussões sobre indígenas para nos ensinar sobre racismo, colonialismo epistêmico, trolls de redes sociais e portais de notícias.
Barbara Arisi: É uma repetição de silêncios, não se quer falar em muitos casos, não se quer ouvir, não se quer admitir que há violência e mortes provocadas pelos silenciamentos, invisibilidades e subalternização. Mas é disso que se trata e se queremos romper o padrão, temos de sair por aí pintando o corpo, mostrando as outras formas possíveis, dragkingzando, dragqueenzando, queerizando e causando. Não acho que é inerente, os seres humanos somos muito variados.
Professor Estevão, o senhor afirma que “a força motriz da máquina colonial é incutir no colonizado a certeza de que, ao esvaziar o colonizado de si, o colonizador está fazendo a ele um favor…” poderia explicar melhor como isso pode ser visto como “um favor” à pessoa oprimida?
Estevão Fernandes: Isso tem a ver com a questão anterior. De certa forma uma das bases do sistema colonial é, justamente, estruturar-se (ideológica e institucionalmente) no sentido de tentar incutir, no “outro”, a ideia de que a diferença é algo a ser anulado e apagado – não para a manutenção do poder desde o polo hegemônico, mas como um gesto de grandeza e gentileza para com o subalternizado…. Assim, “cura-se” o gay: não porque sua existência deixe evidente as contradições de um sistema moral heteronormado e violento, mas para “salvá-lo” do inferno. Se constroem usinas sobre terras indígenas: não porque haja conglomerados financeiros e interesses diversos de políticos, empresários, etc., mas para trazê-los ao “progresso”…. “Veja bem” – dizem as instituições hegemônicas desde perspectivas científicas, religiosas, ideológicas – “você não tem culpa por ser negro, nordestino, indígena,… por professar uma religião de matriz africana, por morar na Amazônia… e, por você não ter culpa lhe ensinarei, impondo meus valores morais, religiosos, raciais, econômicos, filosóficos, epistemológicos como falar certo, agir certo, a abandonar esse “sotaque esquisito”, essas roupas, essas “crenças” para se tornar o que eu sou”… é como se a única saída possível fosse se adequar ao sistema hegemônico, fosse – e eu adoro a palavra – se enquadrar…. depois disso tudo ser imposto, cabe ao dominado entender que, por mais que ele tenha lutado – daí a importância na crença liberal da meritocracia, outra falácia na moda nos círculos conservadores – ele não conseguiu se tornar aquilo que se tentou fazer com que ele se tornasse. Daí porque lutas contra racismos, lgbtfobia, ultranacionalismos, etc. são tão importantes…. eles representam mais do que a resistência a uma lógica de opressão econômica e/ou ideológica, mas a luta pelo próprio direito de res/ex-istir. A história nos mostra que por 500 anos, por exemplo, se impôs a indígenas que buscassem se transformar em brancos – e não qualquer branco: o branco subalternizado, o camponês pobre, mas cristão, monogâmico, hetero e “cidadão de bem”, consumidor e bom pagador de impostos. Tudo isso para seu próprio bem… Esse apagamento das diferenças é algo perigoso, pois, a partir daí, tolhe-se o direito à existências diversas daquelas aceitas desde a lógica hegemônica… A existência desses “outros” põe em xeque as estruturas desde as quais esses dispositivos hegemônicos se sustentam – eis aí porque esta ânsia em se apagar estas formas outras de ser, saber, res/ex-istir…. Temos aí um ponto de toque entre noções como colonização e abjeção, e desde aí uma crítica epistemopolítica poderosa ao racismo e a heteronormatização compulsória como políticas de Estado – algo pelo qual alguns setores de nossas elites têm demonstrado um tremendo fascínio nos últimos tempos, mas isso é tema para outra entrevista…
Ainda nesta perspectiva, quem é mais forte, o manipulado ou o manipulador? O manipulado de hoje pode ser o manipulador de amanhã? Seria apenas uma questão de tempo?
Estevão Fernandes: Não acho que seja uma questão de força, ou que uma dicotomia dessas seja possível (ou algo tão simples). De qualquer forma, quando falo em “hegemônico” ou “subalternizado” não digo que sejam posições fixas, ou que invisibilidade equivalha à vitimização – o que seria um risco! Falando de supetão, todos esses atores mobilizam e articulam (o que, de certa forma, se aproxima da ideia de uma “manipulação”) essas categorias, mas não o fazem de modo linear, tampouco homogêneo. São categorias relacionais e relativas: as formas como se articulam umas em relação às outras, que discursos e imagens mobilizam, desde que lugares de enunciação falam, etc., é algo a ser compreendido e problematizado. As formas como essas perspectivas operam umas em relação às outras pode nos informar mais do que encarar seus lugares de fala enquanto categorias fixas ou hegemônicas.
Barbara Arisi: Acho que somos os dois, manipulamos e somos manipulados. É, de novo, para lembrar Foucault, como os micropoderes, exercemos poder sobre umas pessoas e outras exercem sobre nós. Poderes em relação. É um relacionamento também que se dá internamente, somos inquisidoras de nós mesmas muitas vezes, mas daí é melhor trocar ideias com as amigas psicanalistas talvez!
Qual o peso da ignorância humana, da falta de empatia e da não-aceitação do outro, independente do sistema de Poder, neste cenário apontado no livro?
Estevão Fernandes: Sinceramente, não sei como responder a isso… Digo isso por entender que talvez acabasse sendo anacrônico na resposta, mas é algo que perpassa vários dos relatos trazidos no texto… isso talvez tenha a ver com a questão, já apontada aqui, do esvaziamento de si como força motriz da máquina colonial. Em última instância, a colonização tende a esvaziar o “outro” enquanto potência, fazendo com que seu lugar de existência enquanto pessoa deixe de existir.
Barbara Arisi: Às vezes o ódio pelo que é diferente é bem consciente e vira pregação, campanha, política de erradicação governamental, como agora no caso da Chechenia onde estão prendendo centenas de gays, tal violação é alvo de uma campanha da Amnesty International (da qual sou voluntária). Muitas vezes termina a não aceitação do outro termina em tragédia de grande escala em campo de extermínio fascista, nazista ou comunista.
“Ser diferente” é “normal”?
Estevão Fernandes: Quem disse que ser diferente é ser normal? Ser normal é chato, enfadonho… ser normal é se conformar – e neste momento precisamos de tudo, menos de conformismo!
Barbara Arisi: O normal é a norma, bom mesmo é ser diferente. A liberdade sexual incomoda quem gosta de monotonia. Por isso gosto do símbolo do arco-íris da bandeira LGBT, tem um quê de utopia, de caminhar atrás de algo que é fruto de encontro (de luz e água) mas que não se alcança, as sociedades andam, mas os arco-íris andam sempre mais para a frente.
Quais as conclusões que ficam desse estudo?
Estevão Fernandes: Se eu der spoiler acho que ninguém compra o livro (risos)… Mas, falando sério, algumas das várias conclusões foram indicadas, mesmo que resumidamente, nas respostas acima. ora isso, nossa intenção é de suscitar novos questionamentos sobre o que foi dito aqui. Este livro é tudo, menos um ponto final… Queremos, mesmo, dar continuidade a essas interrogações, se possível incorporando outras vozes e perspectivas que nos permitam problematizar, ainda mais e de forma mais amadurecida e menos tímida, algumas dessas questões.
Barbara Arisi: Que mesmo que te cortem no meio com um tiro de canhão, alguém no futuro pode aprender algo a partir dessa morte trágica e talvez seja possível evitar que outras (os) gays, lésbicas, bis, trans, queers e two-spirits sejam mortas (os) da mesma forma.
Quando o livro será publicado em língua portuguesa no Brasil?
Estevão e Barbara: Assim que alguma editora ou associação científica tiver interesse, de preferência disponibilizando o livro gratuitamente ou com um preço bem popular – como dissemos, essa era nossa intenção desde o começo!
Via - http://www.jornalja.com.br
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